Rumo ao Desconhecido

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Versão em espanhol originalmente publicada em:

<http://betinawaissman.blogspot.com.es/2014/05/hacia-lo-desconocido-entrevista-janet.html&gt;

 

Tradução do espanhol por Luiza Frade (*)

 

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Annie Geissinger entrevista Janet Adler

 

Conheci Janet Adler em 1994 num retiro que ela dirigia na Nova Inglaterra. Eu era uma das mais ou menos vinte pessoas, homens e mulheres, que convivemos durante quatro dias, movendo-nos e observando-nos[2], em um grande círculo. Sabia pouco dela. Fui a esse retiro com o desejo de descobrir a fonte dessa corrente que tanto me havia nutrido e, talvez, em busca da fonte do sonho que evocou em mim a prática em grupo de Movimento Autêntico.

Quando nos encontramos pela primeira vez para esta entrevista, em abril de 1997, eu tinha muitas perguntas. Muitas delas centravam-se no desenvolvimento de seu trabalho e na forma como ele se relacionava com o de sua mestra, Mary Starks Whitehouse. Perguntava-me sobre o significado mais pleno da mudança que Janet havia feito em seu trabalho, ir da “forma básica” (trabalho um-a-um ou em duplas) ao “corpo coletivo”, que é o que eu havia experimentado nesse primeiro retiro. Tal como Janet o descreve, esta inovação está marcada por uma mudança de enfoque: do desenvolvimento do ego – a elaboração da história pessoal – a uma experiência coletiva, uma que inclui o numinoso, a alma. É importante destacar que em 1981 houve um momento crucial no curso da evolução deste trabalho. Quando Janet estava abrindo um Instituto para investigar sobre suas perguntas em torno do movimento e da testemunha teve consciência pela primeira vez de uma experiência que descreveria mais tarde como uma iniciação mística. Minhas perguntas sobre sua iniciação e a relação desta com o Movimento Autêntico formavam grande parte do meu desejo de entrevistá-la.

Nos dezesseis meses seguintes ao nosso primeiro diálogo, este continuou, e revisamos o texto para que revelasse a evolução das ideias de Janet e minha própria compreensão mais clara das minhas perguntas. A entrevista seguinte reflete algo da natureza da minha relação com Janet como sua aluna[3]. Deste modo, também pode refletir a natureza do Movimento Autêntico tal como está evoluindo através do trabalho de Janet, quer dizer, como uma prática da relação, uma prática na qual a experiência central e a pergunta central implicam o fato de verem e de serem vistos uns por outros.

Janet Adler, PhD[4], ADTR[5], ensina Movimento Autêntico desde 1971. Fundou e dirigiu a primeira escola de Movimento Autêntico, o Mary Starks Whitehouse Institute, em 1981. É autora de Arching Backward: the Mystical Initiation of a Contemporary Woman, no qual descreve a experiência de quatro anos e meio com uma energia primal e o impacto desta em seu corpo físico, em seu trabalho e nas suas relações. Nesse ano serão publicados diversos ensaios sobre o desenvolvimento de sua perspectiva de trabalho em um livro editado por Patrizia Pallaro, entitulado Authentic Movement, Essays by Mary Starks Whitehouse, Janet Adler, and Joan Chodorow[6]. Seu trabalho atual inclui um primeiro programa de formação, a prática do ensinamento e supervisão privada, grupos interessados pelo Movimento Autêntico e o texto e a dança místicos, a docência na equipe do Authentic Movement Institute, em Berkeley, Califórnia, e vários projetos escritos.

Annie: Há pouco você me disse que esteve escavando as raízes da disciplina do Movimento Autêntico para entender suas origens – inclusive a do próprio nome.

Janet: Foi estremecedor para mim encontrar no ano passado as palavras “movimento autêntico” em um livro escrito nos anos 30 pelo crítico de dança John Martin. Creio que ele é a primeira pessoa que usa estas palavras – quando descreve a dança de Mary Wigman -, Sei que Mary Whitehouse referiu-se ao trabalho de Martin nos anos 60 quando ambos ensinavam na UCLA[7], mas não sei se alguma vez se comunicaram entre si.

Annie: Em 1981 você deu um nome à sua primeira escola de Movimento Autêntico, Mary Starks Whitehouse Institute. Como se relacionava então seu trabalho com o de Mary?

Janet: Naquele tempo, o trabalho que eu fazia se conectava definitiva e profundamente com o que havia aprendido de Mary, pois se concentrava na experiência da pessoa que se move em presença de outra. Do que não me dei conta foi de que, para mim, o nome Movimento Autêntico incluía também o fenômeno de observar.

Não lembro que Mary usasse o termo testemunha, e não consegui encontrá-lo em seus escritos. Chamava-se a si mesma observadora ou mestra quando eu me movia em sua presença. Não dava instruções alguma sobre sentar-se nas laterais do espaço porque suas alunas não se observavam umas às outras – ainda quando à medida que seu trabalho se desenvolvia escreveu mais sobre suas responsabilidades e experiências como observadora.

O nome, para mim, também incluía a relação consciente entre aquele que se move e a testemunha. Não pensei na forma em que eu estava usando o termo ou em que escrevia com maiúscula as duas palavras. Pensava nisso somente como o nome do que eu queria explorar com minhas alunas. Assumi então que o que quer eu estivesse fazendo era o que havia aprendido de Mary.

Annie: Quando acreditas que começaram a surgir as diferenças entre teu trabalho e o de Mary?

Janet: Em retrospectiva, creio que as diferenças significativas começaram justo então – no primeiro ano do Instituto -. Era inevitável que minha própria personalidade e as perguntas que me surgiam da minha experiência no Instituto criassem uma direção diferente para mim. Esta direção estava mais relacionada com minha necessidade de explorar a experiência da testemunha, assim que, comecei muito cedo a convidar as alunas a serem testemunhas umas das outras. Minhas perguntas sobre o ser testemunha surgiram da minha experiência de ver Mary como testemunha, da minha disposição para estudar a contenção, e imagino que também surgiram do meu desejo de entrar com maior consciência no coração da relação – porque estudar o ser testemunha significava estudar a relação entre o que se move e a testemunha.

Annie: Em Arching Backward você descreve a tarde em que abriu pela primeira vez o Instituto e experimentou pela primeira vez a “energia” da iniciação mística. Você acredita que as suas experiências dessa iniciação estavam relacionadas com as mudanças que vinha fazendo no rumo de seu trabalho?

Janet: Sim. Claro que naquele momento eu não podia saber quão profunda e quão misteriosamente estavam relacionadas a iniciação e a abertura do Instituto. Posso ver agora que minha experiência de iniciação marcou uma mudança dramática no meu trabalho. A presença dos estudantes criou, simultaneamente, o que experimentei como una rede energética, e também como algum tipo de recipiente. Esta gestalt particular deve ter permitido que a forma embrionária da disciplina do Movimento Autêntico fosse estimulada. Ao mesmo tempo, à medida em que vivia a experiência de encarnar esta energia, meu próprio corpo se quebrava com o que poderia ser chamado de dores de parto. Não me dei conta então de que estava participando em dar à luz algo que não só estava fundamentado no ensinamento de Mary mas também em minha experiência direta do numinoso.

Recentemente, e com certo alívio, dei-me conta de que nos últimos dezessete anos de trabalho no estúdio[8], começando com o Instituto, estive me comprometendo e voltando a comprometer-me, da maneira interna mais profunda, com a tarefa de dar forma ao que recebi em minha experiência de iniciação.

Annie: Pode falar mais sobre esta maneira interna?

Janet: Não chegou por meio de palavras específicas ou visões específicas. Mas na iniciação senti com frequência como se meu corpo mesmo estivesse sendo amassado pela energia da forma potencial, amassado devido a uma forma – uma forma de trabalho – que eu nunca podia ver de um modo completo.

Agora a vejo. Vejo que esta guia interna escura era inegociável e inevitável, que me conduzia à revelação de uma prática, uma prática que depende da força criativa em seu centro, a pura alma encarnada; uma prática que organicamente requer a presença do outro.

Dar-me conta disto agora me ajuda a entender porque minha experiência da evolução desta disciplina foi ao mesmo tempo tão dolorosa e tão gratificante. Não sabia conscientemente que os ensinamentos que recebi na minha iniciação estavam abrindo passagem à encarnação coletiva consciente neste mundo de agora. Contudo, ao ensinar aos meus grupos havia sempre perguntas novas e frequentemente pressionantes. Raramente tive a impressão de saber como seguir essas questões, exceto movendo-me às cegas, mas com segurança, ao próximo lugar, sem nunca saber o que ali encontraríamos. E tinha que ser nós, não eu sozinha, porque os descobrimentos encarnados requeriam um círculo de seres. Precisamente porque os ensinamentos eram sobre a relação do indivíduo com o todo, necessitávamos uns dos outros a fim de avançar torpemente em direção à totalidade encarnada em nós como indivíduos, no seio de nossas relações com o outro, um a um, no corpo coletivo e em nossas relações individuais com o divino.

A relação em qualquer de suas formas nos ensina algo sobre nossa capacidade de aceitar, suportar e sobreviver ao sofrimento, o nosso próprio e o de cada ser, gerando assim gradualmente o desenvolvimento da nossa compaixão. Nossa compaixão depende completamente da nossa experiência do outro, da nossa relação com o todo. Necessitava que outros viessem comigo, o que significava superar grandes temores: o temor de ser mal interpretada pelos outros, o temor de convidar outros a experiências que eu não podia conhecer de antemão e o temor de trair a mim mesma.

Annie: O que você quer dizer com o temor de trair a si mesma?

Janet: Mudar do formato de duplas ao trabalho do corpo coletivo foi algo aterrador para mim. Você foi parte de um grupo no qual estávamos fazendo esta mudança. Estou segura que se lembra.

Annie: Sim, a primeira vez que trabalhei contigo. O fato de mover-me no grupo me gerou um intenso temor, um sentimento de não ter noção dos limites do meu corpo, de estar perdida, totalmente indefesa. Lembro que tinha medo de mover-me sem a segurança de ser observada todo o tempo por uma pessoa. Minha irmã havia falecido dois anos antes em um acidente automobilístico. Creio que minha experiência estava relacionada em parte com isso, com a repentina, inalterável desconexão: não querendo suportá-la.

Janet: Naquele momento, depois de escutá-la falar sobre as suas necessidades, lembro vividamente onde você está de pé e como está se movendo. “Vejo” desmoronar um pedaço da parede atrás de você, abrindo o espaço, ampliando a minha perspectiva, lembrando-me que não devo trair a mim mesma, nem à minha inexplicável necessidade de continuar, arriscando-me a que você talvez não se sinta vista. E senti certa agonia enquanto soltava minha própria necessidade de lhe dar testemunha pessoal tanto quanto você necessitava. Em outro momento, enquanto ensinava no trabalho coletivo, lembro de mim sabendo que tinha que estar em silêncio como testemunha e não oferecer mais testemunho verbal. Mas na realidade não sabia por quê. Foi um risco doloroso.

Tais momentos, em especial as transições mais desafiantes das duplas ao trabalho coletivo – ou de falar a guardar silêncio – ou desde as pessoas que se movem e as testemunhas falando um para o outro no coletivo, se dirigindo à escrita e depois à leitura entre um e outro – cada risco desafiava minhas capacidades de resistência -. E ao final de nossos dias juntos (qualquer que fosse o grupo), ao dar-me conta do que havíamos conseguido, sentia-me liberada! Esses eram os momentos gratificantes, quando havíamos cruzado sem perigo o umbral e sabia de novo que havia uma ordem inerente à evolução orgânica deste caminho ao qual eu estava inexoravelmente unida. Cada uma dessas travessias requeria o compromisso de indivíduos, a resistência de indivíduos e a confiança de indivíduos.

Annie: Para mim, esse retiro terminou de modo bastante dramático, com a força vital em meu interior reafirmando-se de maneira muito enfática, como se me agarrasse e me tirasse energicamente de uma inundação. E é muito comovedor ouvir seu relato e como lhe afetou, particularmente em relação ao temor de trair a si mesma. Porque um dos ensinamentos que me deixou a prática do Movimento Autêntico foi a crescente compreensão de que devo ser fiel a mim mesma, de que cada um de nós deve manter seu lugar tão plenamente quanto lhe seja possível, e que esta parece ser a forma mais profunda e mais importante de servir-nos uns aos outros.

Janet: Sim, cada uma de nossas contribuições, seja quando nos movemos ou como testemunhas, é essencial, única e inextricavelmente conectada com as demais. Cada um de nós tem a sua vez, mas somente devido aos outros que no devido momento tiveram sua vez, ensinando-nos, mostrando-nos, permitindo nossa aproximação das perguntas que iam surgindo em nós. Muito me comove pensar nessa linhagem, que percebo melhor como uma rede vibrante. Penso nos anos em que fui mestra de Diana Levy, e depois nos anos em que Diana foi sua mestra, e agora eu sou sua mestra e você é a mestra de outro. Gosto que esta forma não seja especificamente linear.

Como minhas próprias alunas bem sabem, creio que é imperativo para uma aluna que prove de tudo que lhe ofereçam suas mestras, que tome o que lhe pertença – o que necessita do trabalho com sua mestra – e, quando chegue o momento apropriado, solte todas as coisas e se aproxime de seu próprio e único caminho. Uma de minhas maiores alegrias é ser testemunha de algumas de minhas alunas mais avançadas, descobrindo formas de trabalhar, novas e subitamente necessárias – com a qual contribuem de modo importante à nossa experiência de consciência política, ao ritual, ao trabalho com a caixa de areia[9], à representação, à criação de novas e oportunas mitologias -, e ao fazê-lo, asumem a vez de participar no desenvolvimento da disciplina.

Annie: Você poderia falar de outro mestre que afetou o rumo do seu trabalho, John Weir? Creio que você mencionou pela primeira vez sua influência quando Neala Haze e Tina Stromsted lhe entrevistaram em 1994, na revista da American Dance Therapy Association[10].

Janet: Sim. Só então me dei conta de que o trabalho de John, tal como o experimentei em dois workshops no final dos anos 60, era uma parte central do desenvolvimento da disciplina de Movimento Autêntico. Se resumo os dons recebidos desde o temor do fenômeno o que se move/testemunha, o dom mais precioso que me deu Mary foi a oportunidade de entrar sem risco no mistério de mover-se e ser movido. E o grande dom de John foi sua estrutura contextual para minha experiência como testemunha.

Quando abri o Instituto, disse de imediato: “O que se move é o expert. O que se move fala antes da testemunha. A testemunha não se refere a qualquer conteúdo que antes não tenha sido mencionado pelo que se move. Devemos reconhecer nossos juízos, projeções e interpretações. A única forma de sair é entrar e ir nessa direção.” Disse tudo isto como se o soubesse e como se, supostamente, fosse uma parte integral do Movimento Autêntico. Não entendo completamente como a forma de pensar e falar de John sobre a experiência pessoal caiu repentina e simplesmente tão dentro do meu ensinamento sobre o mover-se e ser testemunha.

Naquele tempo fazia provavelmente uns dez anos que eu não estava em contato com John. Mas havia influenciado tanto em mim sua forma de perceber e falar sobre o eu, que devo ter absorvido inconscientemente seu sistema de linguagem, e assumi que tudo isso era parte do Movimento Autêntico como Mary me havia ensinado. De muitas maneiras “a linguagem perceptual”[11] de John poderia ser relacionada com a compreensão progressiva de Mary em seu papel de testemunha, mas John criou todo um sistema conceitual, baseado essencialmente em seu estudo da transferência segundo uma referência freudiana.

John escreveu muito pouco, mas em minha investigação do ano passado, fiquei extasiada ao ler pela primeira vez um capítulo que ele escreveu num livro no início de sua carreira, e encontrar a palavra “testemunha” em seu escrito sobre o processo grupal. Em um par de parágrafos se refere à palavra compartilhada como uma espécie de testemunho. Descreve as testemunhas como gente que pode oferecer uma observação acolhedora, com uma atitude de aprovação e respeito, a outros membros do grupo que estão revivendo traumas antigos. Devo tê-lo escutado usar esta palavra em seu ensinamento, e estou muito agradecida porque sempre me fascinou esta antiga palavra. Necessitava esta palavra para refletir minha exploração da experiência daquele que deseja ver com claridade.

Annie: Pode dizer algo mais sobre o trabalho de John Weir e como você entrou em contato com esse trabalho?

Janet: John, um experiente lider de grupo, é um psicólogo que tem agora uns oitenta anos. Seu trabalho concentrou-se principalmente na experiência física, com forte ênfase na autodisciplina, na apropriação do eu. Além dos profundos insights[12] no desenvolvimento psicológico do eu, sua filosofia, vejo agora pela primeira vez em seus escritos, incluiu uma compreensão da testemunha interior, do ritual e da cerimônia, evocadora das práticas espirituais.

Ele e Mary trabalharam brevemente juntos em um par de seus cursos em Maine. Foi no workshop de John que me encontrei pela primeira vez com o movimento autêntico, ensinado de modo concreto naquele verão por uma estudante de Mary. Não houve dúvida sobre o poder que esse workshop teve em mim e da segurança que ali se respirava. Eu tinha 28 anos. Acordei para estas duas esferas – a linguagem perceptual e o movimento autêntico – em um período de duas semanas.

Annie: Pode-se dizer que o trabalho de John foi fundamentalmente influenciado por Freud? Inclusive muita gente associa o Movimento Autêntico e o trabalho de Mary Whitehouse com o pensamento junguiano …

Janet: Parece-me que as raízes, pelo menos o que chamo a forma básica da disciplina do Movimento Autêntico – o trabalho em duplas – encontram-se igualmente nas contribuições de Freud e de Jung. A teoria do desenvolvimento de Freud, com ênfase nos fenômenos psicofísicos, constituiu a semente do meu próprio trabalho inicial com as crianças autistas. Essas foram minhas experiências prévias ao contato com o trabalho de John Weir, que cresceu a partir da compreensão de Freud sobre o inconsciente e o poder central das relações originais com as figuras parentais. Ainda quando percebo que aspectos importantes do trabalho de Freud são incompatíveis com minha forma de entender o espectro total de uma vida em desenvolvimento, ao abrir a porta do inconsciente Freud revelou simultaneamente a presença do corpo, denso e magnífico, justo alí no umbral.

Como o trabalho de Mary em sua análise junguiana influenciou enormemente seus descobrimentos sobre a sabedoria do corpo, ela introduziu o movimento autêntico a partir da estrutura do pensamento junguiano. A compreensão que teve Jung da experiência direta e das notáveis formas nas quais buscou extrair significado – com exploração das ricas, vitais formas e das histórias essenciais dos arquétipos – resultam-me familiares devido aos meus descobrimentos no movimento autêntico com Mary, mas tal processo não está no centro da minha própria prática.

Nunca me senti cômoda dizendo que a disciplina de Movimento Autêntico seja especificamente uma forma junguiana de trabalho, não somente devido à forte influência de Freud em John, mas porque penso que minha própria forma de entender a experiência direta pode ser mais Oriental, diferente da forma como percebo que Jung a entende.

Annie: Que trouxeram consigo seus recentes descobrimentos relacionados ao seu discernimento sobre as fontes de seu trabalho?

Janet: Umas das minhas alunas, Patrizia Pallaro, esteve editando os dois volumes da próxima publicação sobre Movimento Autêntico, revisando os artigos de Mary, os artigos e Joan, e os meus para a publicação do Volume Um. Ela destacou de modo respeitoso como a disciplina de Movimento Autêntico – o rumo próprio da minha investigação – é diferente, embora inclusivo, do movimento autêntico. Agora me dou conta do que ela quer dizer, mesmo quando nunca tive a intenção de participar tão intensamente do desenvolvimento de uma disciplina. Com os dons dos meus mestres, não diferenciados internamente, estava tratando de seguir o que sempre sentí como uma chamada intuitiva em direção ao desconhecido.

Annie: Assim que Patrizia foi capaz de ver seu desenvolvimento neste trabalho, de terapeuta[13] a mestra de uma prática na qual as duplas evoluíram para um trabalho de corpo coletivo.

Janet: Assim é. Eu era terapeuta corporal quando estudei com Mary Whitehouse em 1969. Quando me mudei para a costa este, continuei explorando o movimento autêntico numa prática privada de tempo parcial. Assim entrei no trabalho, com uma perspectiva psicológica. E sigo acreditando que uma testemunha tem que contar com suficiente experiência conscientemente encarnada de seu próprio processo psicológico, e com uma compreensão da psicologia do desenvolvimento para ser realmente capaz de estabelecer uma relação correta com o material psicológico de quem se move frente a ela mesmo quando não vai processar esse material comprometendo-se como terapeuta.

Como mestra/testemunha na minha prática atual da disciplina de Movimento Autêntico, minha responsabilidade é continuar colocando atenção à minha experiência interna na presença de qualquer conteúdo, de qualquer material que seja despertado, explorado no contexto da experiência de mover-se ou de ser testemunha. Minha intenção é praticar em direção a um esvaziamento de mim mesma, dos meus sentimentos, pensamentos, sensações, etc. Isto é específica e sutilmente diferente de “sustentar” o material psicológico para ou com aquele que se move. Mesmo quando alguém pode mover-se na presença de um terapeuta ou de uma testemunha num formato de dupla ou de grupo, a experiência do terapeuta ou testemunha e a forma de articular essa experiência podem ser bastante diferentes. Neste contexto, as diferenças se distinguem pela intenção.

Annie: Pergunto-me quem ou que modo de compreender a experiência direta no corpo influencia a sua forma de pensar agora.

Janet: É minha prática no estudio que me impulsiona a explorar, a estudar um caminho de percepção no simbólico, também no dualista, mais metafísico que psicológico. Necessito ocupar-me de explorar o saber intuitivo, um fenômeno que inclui o insight, mas não a projeção nem a interpretação.

Sinto-me cada vez mais atraída pelas complexidades da experiência da testemunha interior, da qual me dou conta de que é o núcleo de muitas práticas meditativas. Uma distinção básica entre essas práticas e a prática de Movimento Autêntico é que nas práticas meditativas, a testemunha interior se desenvolve sem um compromisso consciente em relação a outro, alguém que se mova ou uma testemunha, durante o tempo real da meditação. Na disciplina de Movimento Autêntico a presença de outra pessoa durante a prática real de mover-se ou ser testemunha é essencial por definição.

Ultimamente comecei a estudar com maior seriedade textos budistas. Há pouco, uma nova amiga, monja Zen, movia-se diante de mim e eu era testemunha. Quando falamos juntas, depois da experiência, perguntou-se se a disciplina de Movimento Autêntico é a forma feminina do Zen. Essa cativadora pergunta e outras que descobrimos em conversações posteriores são de enorme importância para mim; apontam para outras raízes da disciplina.

Annie: Pergunto-me como se relaciona mais especificamente sua iniciação mística com esta prática de Movimento Autêntico no trabalho coletivo. O que se apresenta à mente são experiências do que eu poderia chamar “energia” no trabalho coletivo, as vezes em que se sente que entre os que se movem está se revelando uma história completa ou está sendo representado um ritual completo, sem que ninguém soubesse antecipadamente que isso ocorreria – e no entando cada um está desempenhando sua parte exata. Ou as vezes em que, de modo grande ou pequeno, sincronicamente, parece que ocorrem coisas até milagrosas. Estas experiências estão relacionadas com sua vivência de iniciação? É esta a mesma “energia” que você experimentou?

Janet: Sim, diria que o que você está descrevendo é misterioso, altamente ordenado, e reflexo desse tempo e espaço inefáveis em que a intuição e o pensamento claro se tornam um na experiência de determinados indivíduos ao mesmo tempo. Isto sinto definitivamente relacionado com os fenômenos energéticos. Poderia ser chamado de ritual espontâneo. Para mim é menos importante entender como cada experiência é parte dos fenômenos energéticos do coletivo total – ou inclusive entender o que isso significa – que meu desejo de particar juntos num contexto seguro, que requer confiar no compromisso de cada indivíduo de praticar com consciência. Creio que os coletivos que estão adquirindo consciência devem preparar-se para sustentar de modo seguro o que seria demasiado grande para ser sustentado por somente um indivíduo. Isto se pode fazer mediante a prática contínua das diretrizes da forma básica.

Imagino que em trabalho de grupo a segurança psicológica tem algo a ver com o potencial do coletivo para sustentar de modo seguro a psique de cada indivíduo. Mas esta possibilidade depende totalmente do desenvolvimento da testemunha interior de cada indivíduo, se é “suficientemente bom” para conter de modo seguro e expressar suficientemente seus próprios complexos psicológicos na presença de outros. Para que cada indivíduo se aproxime da relação correta com o todo, deve haver suficientes testemunhas interiores “suficientemente boas”. Concordo amplamente com Tich Nhat Hanh quando diz que o próximo Buda será uma Sangha – a comunidade de praticantes -. Devemos tornar-nos responsáveis por nossa própria luz, nossa própria sombra, e não mais projetá-las nos outros. Não necessitamos de mais deuses. Necessitamos de anciãos e guias, mestres, terapeutas e testemunhas, rabinos e sacerdotes que nos ajudem a encontrar os deuses que temos dentro enquanto nos encaminhamos à participação consciente no corpo coletivo.

Annie: Mesmo quando você não tinha ao seu redor um círculo de testemunhas experimentadas durante sua iniciação, pergunto-me se o que viveu poderia chegar a ser mais comum para outros praticantes de Movimento Autêntico. Você pensa que a prática atrai de algum modo esse tipo de energia?

Janet: A prática oferece um convite, um constante convite para renunciar à vontade. Nunca podemos saber o que poderia surgir enquanto isto ocorre. Enquanto estamos no limite[14], duvidando entre entregar-nos ou não, creio que a maior pergunta é: “Estou seguro?”. “Isto é apropriado?”. Os limites e a liberdade criados pela prática tornam possível expandir a experiência de alguém, o que inclui fenômenos energéticos. Não é estranho, agora, que uma pessoa que esteja nesta prática experimente uma forte encarnação de energia pela primeira vez – de modo algum buscada -. Este pode ser o princípio de uma experiência de iniciação ou um momento isolado que poderia ou não repetir-se posteriormente.

Annie: Acredita que a energia busca o recipiente que é criado pela prática?

Janet: Não sei se diria que a energia busca um recipiente, mas dado que o recipiente está se desenvolvendo de modo consciente com mais e mais integridade, creio que é inevitável que a energia seja vivida por certos indivíduos dentro do recipiente formado pelo corpo coletivo. Reconheço que esta energia é impessoal e inerentemente boa, como um dom. O desafio é como entrar em uma correta relação com ela. Vejo que esta energia está ocorrendo na cultura com maior rapidez, com maior frequência e, creio, com maior oportunidade de ser recebida conscientemente. Não era assim nem sequer há cinquenta anos. Agora há um crescente número de gente que oferece seus relatos de experiência direta com o numinoso em libros, escolas e instituições relacionadas com fenômenos energéticos. Nossa cultura apenas está começando a incluir, e inclusive a aceitar ocasionalmente, tais fenômenos no contexto de experiência de um indivíduo.

Annie: Thomas Merton cita um ditado do Tibete na sua revista da Ásia: “O leite da leõa é tão precioso e tão poderoso, que se o colocas num copo comum, o copo se quebra.” Na minha opinião, isto salienta o assunto da relação entre o que contemos e o tipo de recipiente que temos ou somos. Para conter algo tão precioso e tão poderoso, que copo não é ordinário? Que copo não se quebraria?

Janet: Não me é familiar este ditado específico, mas seguramente alguns recipientes são mais fortes que outros, precisamente devido à prática intencional de alguns indivíduos em direção à consciência encarnada. É uma forma de vê-lo.

Outra forma de vê-lo é esta: O que ocorre se dizemos que todos os copos se quebram, inclusive os fortes, os extraordinários? Então nossa tarefa é aprender como estabelecer relação com o copo quebrado. O sofrimento que causa a ruptura da velha forma – o eu ou o coletivo como alguém o conheceu – torna possível a mudança verdadeira dessa forma, e cria o potencial para a compaixão autêntica.

Algumas pessoas que praticam a disciplina de Movimento Autêntico poderiam dizer que o círculo não deveria romper-se nunca, que somente é “sagrado” se se mantém inteiro. Minha opinião é que sempre devemos empenhar-nos em tentar prestar atenção completa à nossa experiência, tanto se somos a testemunha como o que se move e que, inevitavelmente, deve romper-se, e isso é o que na realidade cria sua fortaleza. Conhece o tipo de porcelana que é muito frágil? É o tipo que raramente usamos por medo de quebrá-la. Mas o copo feito de barro, esse que foi trabalhado e consertado – a integridade potencial desse copo vem da fragmentação, não da unidade. Isto é semelhante à cura. A integridade não cria integridade, na minha experiência. É a fragmentação que cria a oportunidade da integração, e isto inclui a oportunidade de uma contínua fragmentação. Assim que, mesmo quando as diretrizes da prática saem de experiências no estúdio, tratar de seguí-las “religiosamente” me faz pensar no copo de porcelana. A forma se torna demasiado frágil, e não útil, não … terna.

Annie: Lembro de ter falado disto alguma vez com Alton Wasson. Ele falava sobre estar rigorosamente atento ao que é verdadeiro, à sua experiência, em oposição a estar rigorosamente atento à forma; quer dizer, a assegurar-se de que tudo ocorra bem. Seria, de certo modo, um uso equivocado do rigor.

Janet: Sim, concordo. O rigor da prática pode ser criado por nosso desejo – desejo de consciência clara, calada -. Este desejo ajuda a criar as diretrizes. As diretrizes ajudam a criar segurança. A segurança atrai a confiança. A confiança é essencial para o trabalho transformador. Eu desejo a confiança suficiente para ser capaz de ver o que estou pronta para ver, ouvir o que estou pronta para ouvir, saber o que estou pronta para saber; desejo suficiente confiança para ser como verdadeiramente sou. Asim, as diretrizes podem ajudar-nos a trabalhar com maior veracidade. Mas se as diretrizes inibem a liberdade de arriscar-se a trabalhar verazmente dentro da segurança da prática, então o trabalho se converte em … em que?

Annie: Pois, talvez em religião. Isso é o que me ocorre. Torna-se como uma religião, na qual podemos buscar algum ensinamento essencial e logo ver-nos enrolados em regras e normas, nas formas corretas e equivocadas de fazer coisas, e então o impulso original se perde ou se esquece.

Janet: Quais são os antecedentes religiosos?

Annie: Fui criada como cristã protestante. Mas deixei os estudos universitários para viver num ashram[15] durante alguns anos. Ali tive experiências inesperadamente poderosas que me ajudaram a entender muito mais sobre minha relação com uma verdade mais vasta. Pensei que essas experiências eram o resultado das práticas e orientações oferecidas por aquela comunidade. Era muito jovem, tinha dezoito anos. Pensei equivocadamente que para seguir tendo essa nova relação, essa enorme compreensão básica, tinha que seguir aquelas regras e diretrizes – que a conexão estava nas diretrizes -. Levei muito tempo até dar-me conta de que tinha que encontrar meu próprio caminho, reconhecer que, num nível mais profundo, o específico das práticas nada tinha que ver com o que eu estava buscando.

Creio que isto é o que ocorre com a religião. A questão das regras, as formas corretas e equivocadas de fazer coisas, o único que fazem é começar a interpor-se completamente ao impulso original de conectar-se com o divino. Qual é a forma correta de manter-se comprometido com a experiência do verdadeiro? E como encontro minha própria e determinada forma? Na prática do Movimento Autêntico as orientações são muito simples. Ofereceram-me tremenda liberdade para explorar esta questão. E as orientações apóiam com muita claridade o impulso original, oferecendo um lugar seguro para que este seja expresso.

Janet: Antonio de Nicholas escreve sobre a diferença entre a voz profética que surge das estruturas religiosas e a voz poética que surge da experiência mística. A voa profética diz: “Aqui é onde estás. Isto é o que Deus quer. Assim é como se há de comportar.” Mas a voz poética fala sobre a forma com que deus poderia experimentar – de modo direto no corpo – outra forma de conhecer -. Penso nestas duas vozes em sua experiência no ashram. Talvez ocorram vezes em que necessitamos outra voz que nos guie no descobrimento do que já conhecemos, mas esquecemos: nossa verdadeira natureza, nossa voz poética. E então o que necessitamos é um contexto seguro, um lugar apropriado, na presença de outro ou outros, para dar-lhe boas-vindas.

Annie: E é isto o que estamos tratando de criar na disciplina de Movimento Autêntico – o contexto seguro e apropriado?

Janet. Sim.

Annie: Acredita que é importante para nós aprendermos algo sobre outros lugares e culturas onde se honre a voz poética? Impressiona-me como, depois de sua intuição, você afundou no estudo do misticismo, direcionando-se para um doutorado em Estudos Místicos. Foi para encontrar um contexto para a sua experiência?

Janet: Sim, exato, exato. Necessitava saber se pertencia e onde. Alguns sabem muito sobre o contexto e depois têm a experiência direta. Outros, como no meu caso, têm a experiência direta e depois vão em busca de um contexto. Mas não importa – creio que como seres humanos simplesmente necesssitamos dessa relação com o todo. Para que o todo seja vital, creio que cada um de nós deve ter a liberdade de adentrar-se[16] de modo único – no momento preciso, com todo o tempo, todo o espaço – no desconhecido. Na medida em que nossa experiência direta se torna consciente, essa entrada nos modifica de imediato e para sempre, a cada um de nós, e simultaneamente expande o todo.

Annie: Me fascina essa parte que diz: “Entrar de modo único.” Isto é! Isto é o que quero. Isto é exatamente o que quero! A liberdade de entrar de modo único.

 

 

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Notas:
1 Tradução do artigo “Towards the Unknown”, publicado na revista A Moving Journal edição Outono-Inverno 1998. Foi traduzido e publicado com a permissão de suas autoras. Traduzido para o espanhol por Lucía Martínez, revisão de Malem Álvarez, com a supervisão de Betina Waissman.

2   Aqui se utiliza la palabra “witnessing” que inclui algo mais que a mera observação. Supõe ser testemunha de outros e sua experiência. É um componente central do trabalho de Movimento Autêntico, com profundas implicações.

3    Em inglês, a palavra “student” é utilizada tanto para o feminino como para o masculino. Aqui estamos escolhendo o formato feminino e iremos alternando ao longo do artigo.

4   Abreviatura do título Doctor of Philosophy, Doutora en filosofia.

Abreviatura de Academy of Dance Therapists Registered, Membro Registrado da Academia de Dança Terapeutas.

O livro citado foi publicado em 1999 por Jessica Kingley Publishers.

Abreviatura de University of California, los Angeles, Universidade da Califórnia, Los Angeles.

Em inglês, “studio work”  implica o trabalho continuado de aprofundamento num lugar específico para isso: o estúdio.

A caixa de areia é um recurso para o trabalho projetivo utilizado em processos de terapia junguiana.

10 Associação Norte Americana de Dança Terapia, Fundada em 1966.

11 “percept language”.

12  Mesmo quando este termo poderia ser traduzido como “percepções”, “compreensões” ou “revelações”, o termo em inglês é amplamente aceito.

13 Escolhemos traduzir “movement therapist” como “terapeuta corporal”, já que em espanhol/português não se utiliza “terapeuta do movimento”.

14 “Edge” inclui “borda, limite, fio”.

15 Lugar de ensinamento e meditação hinduísta.

16 Aqui “step in” inclui entrar, dar um passo em direção a, adentrar, aproximar-se com decisão.

 

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Traduzido por MARIA LUIZA DUARTE FRADE (*)

luizafrade.psi@gmail.com – Brasília/DF/Brasil

Professora, Psicóloga, Terapeuta Clínica do Colégio Internacional dos Terapeutas – CIT

Abordagem em Movimento Autêntico

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Um pensamento sobre “Rumo ao Desconhecido

  1. […] vinte pessoas, homens e mulheres, que convivemos durante quatro dias, movendo-nos e observando-nos[2], em um grande círculo. Sabia pouco dela. Fui a esse retiro com o desejo de descobrir a fonte […]

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